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Cultura
Quarta - 20 de Julho de 2016 às 15:42
Por: Isabela Mercuri - Olhar Direto

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Há oito anos, se alguém lhe dissesse que ela seria uma rapper e que chegaria até mesmo a gravar um álbum cheio de músicas autorias, Karla Vecchia, hoje com 26, provavelmente não acreditaria. A paranaense que veio para Cuiabá recém-nascida, trazida por sua mãe adotiva, passou por diversas dificuldades na vida, chegou a morar na rua e ser presa. Hoje, canta sua realidade para ajudar outras mulheres.

Karla nasceu em Apucarana, no Paraná, mas já na universidade foi entregue à sua família adotiva, que morava em Cuiabá. Por aqui, cresceu no bairro Coophamil e sempre teve tudo o que quis. “Como eu era adotada, meus pais sempre me deram coisas demais, amor demais, brinquedos demais, presentes demais”, conta.



Aos treze anos, depois que seus pais se separaram e seu avô materno foi diagnosticado com Alzheimer, ela voltou para o Paraná com a mãe. Foi nessa época que começou a se envolver com as drogas. “Eu já era uma criança diferente, uma criança com a doença de adicção. Era muito complexa, tinha muita raiva, dava muito trabalho”. Na cidade sulista, Karla se deparou com uma realidade diferente da que sempre viveu em Mato Grosso.



Aos poucos, começou a se envolver com o mundo da rua. “Comecei usando as chamadas drogas leves. (...) Aquela menina perdida, revoltada, muito também por reflexo da adoção buscava uma forma de anestesiar a dor”, relembra. Aos dezessete, ela saiu da casa da mãe e foi para a rua. “Minha mãe também não soube lidar comigo. Estava com o pai doente, se dedicando a ele. Foi uma forma que eu encontrei de chamar atenção”.



Na rua, passou por todas as situações possíveis. Karla se entregou ao crack e fazia de tudo para se manter nas drogas. “Minha família tentou me ajudar, adoeceu junto comigo, mas não adiantava. Eu tinha um primo que sempre ia na rua tentar me buscar, e ele ficava decepcionado porque não conseguia me tirar dali”.



Em 2008, a garota foi internada em uma comunidade terapêutica evangélica em Ponta Grossa (PR), onde ficou por seis meses. “No dia em que eu saí eu já usei drogas novamente”, conta. Para ela, a grande questão foi que nesta comunidade eles trabalhavam apenas um aspecto da doença, o espiritual. “A doença de adicção é mental, espiritual e física. É verdade que foi na comunidade que tive meu primeiro contato com Deus, mas eu não me recuperei”.



De volta às ruas, Karla chegou a ser presa. Da rua à casa de recuperação, nada adiantou. Em 2010, então, sua família decidiu que ela voltaria a Cuiabá para morar com seu pai. “Eu cheguei, fiquei uns dias quietas, e logo conheci o Porto. No início da adicção eu estava fascinada pela ostentação do crime, do poder, da anestesia da minha dor. Eu nunca tinha imaginado as consequências disso. Nunca ninguém me disse”.



Na capital mato-grossense ela se ‘afundou’ ainda mais. Passando pelo Porto, Centro e Pedregal, agora ela dormia literalmente nas ruas, sumia de casa durante longos períodos e seu pai não sabia se ela estava viva ou não. “Ele ia no Porto, procurava por mim... até que um dia o amigo do meu pai me viu no Pedregal. Ele foi lá, me disse pra voltar pra casa, mas eu não queria. Eu só queria usar. A gente perde o direito de escolha”.



Foi algum tempo depois, quando um machucado no pé se tornou uma grande infecção e Karla precisou de ajuda médica que veio a libertação. Ela encontrou um representante do Narcóticos Anônimos (NA), que tinha conhecido em uma de suas vindas a Mato Grosso, e foi convidada para ir à unidade terapêutica. “Fiquei lá vinte e cinco dias, saí e voltei para o vício por três dias. Depois fui pra comunidade novamente, fiquei mais vinte e cinco dias e estou até hoje. Faz cinco anos que estou limpa”, comemora.



Apesar de estar há tanto tempo sem usar nenhum tipo de droga, Karla tem consciência que não está curada. “A adicção é uma doença incurável e progressiva”, explica. Assim, ela está ‘estacionada pela abstinência’, mas o tratamento continua, tanto que ela vai ao NA quase todos os dias, e continua fazendo terapia.



O Rap





A bagagem que Karla tem, com apenas vinte e seis anos de vida, lhe trouxe a necessidade de falar. Falar por si, pelas outras mulheres da periferia, por aqueles que não têm voz. Há dois anos, três depois de ter se afastado das drogas, com a ajuda de seu ‘padrinho’ Mano Raul, ela conheceu o mundo do rap.



“Ele tem um programa na rádio comunitária CPA FM chamado fábrica do rap, e me convidou pra apresentar. Ele acompanhou minha história desde quando eu deixei as drogas, sabia que eu gostava de rap e me ajudou. Nessa época conheci muita gente da cena, vários grupos, inclusive a Kessidy”, conta Karla.



O encontro com Kessidy, cuiabana dez anos mais nova que também cantava rap, foi um marco para ela. “Conhecia alguns grupos e caras que falavam com muita propriedade de temas da periferia, de violência policial, mas não conhecia uma voz feminina”, comenta.



Conhecer Kessidy foi mais uma forma de se sentir forte e saber que ela poderia chegar onde queria. Afinal de contas, quem poderia falar sobre os problemas das mulheres? Quem poderia falar sobre o que é ser uma mãe solteira? Quem poderia falar sobre a mulher na sociedade, as ideias femininas?




Karla Vecchia e sua filha Alice (Foto: Arquivo Pessoal)



Com a certeza de que ela era uma das pessoas que traria essa resposta, Karla começou a compor. Seu primeiro rap, na realidade, foi escrito lá atrás, dentro da comunidade evangélica. “Foi só um treino. Eu sempre gostei de escrever poesia, desde pequena. Depois, minha madrinha Luciene Carvalho me ensinou a fazer rimas”.



Depois de gravar algumas de suas músicas e também parcerias com grupos e artistas da terra, agora Karla se prepara para lançar seu primeiro álbum, provavelmente até o final do ano. Com diversas músicas autorais e participações especiais, o CD será dedicado a contar histórias de mulheres, tanto as suas, quanto a de outras que ela conheceu pela vida.



“Eu sou mulher, já passei por várias dificuldades e hoje digo que o rap é um dos meus alicerces (...) Sei que existem muitas irmãs perdidas, muitas que ainda dependem das drogas, muitas que apanham dos maridos em casa e acham que são culpadas de alguma forma. (...) Eu quero que minha música chegue onde tem que chegar. Quero passar essa mensagem”, comenta.




Hoje Karla é arteeducadora e dá aulas sobre Hip Hop para crianças da periferia e reeducandos do CRC e do Pomeri (Foto: Arquivo Pessoal)



Falar sobre sua experiência, no entanto, não foi fácil. A cena do rap, assim como o mundo todo, é machista. “Já teve boicote em cima do palco, já deixaram de me chamar pra eventos, deixaram de me ouvir quando me posicionei, só porque sou mulher. Eles estão com medo, porque nunca tiveram que lidar com isso. Mas a mulher tem voz e tem vez, e é só o começo. Vão ter que aturar”, finaliza.

Serviço

Conheça mais sobre o trabalho de Karla Vecchia pelo CANAL no Youtube. No próximo daia 13 de agosto, ela será uma das atrações do evento ‘Hip Hop Combate às Drogas’, no Porto, e em novembro viaja para cantar em Brasília.





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