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Nacional
Sexta - 22 de Maio de 2015 às 09:57

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Falar em “tabu” talvez seja assumir um moralismo que certamente não combina com o pensamento de milhares de jovens devoradores de um tipo de livro que não para de chegar ao mercado. Por outro lado, não pensar em “tabu” é ignorar que há uma mudança na literatura juvenil, com a publicação de obras que tratam diretamente de sexualidade e trazem detalhadas descrições de relações sexuais entre adolescentes. Algo raríssimo ou impensável há uma década.

O nível de citação pode começar por uma inocente cena de perda de virgindade num quarto escuro, mas pode chegar até a trechos como “eu simplesmente não estava pronta para colocar o *** dele na minha boca”, trecho do livro “Nada é para sempre”, o primeiro volume da série “Garota <3 garoto”, de Ali Cronin, publicado obviamente sem os asteriscos.

— Que eu saiba, nunca tive uma reação negativa por causa das cenas de sexo de meus livros. Na verdade, a única coisa que aconteceu foi um resenhista escrever que eu provavelmente seria virgem, porque minhas cenas de sexo seriam muito irreais — diz a inglesa Ali, cuja obra é publicada no Brasil pelo Seguinte, selo da Companhia das Letras para literatura juvenil. — Eu tenho três filhas, de 5, 9 e 11 anos. Não teria problema algum em deixar minha filha mais velha ler essas cenas. Para o leitor jovem, conhecimento é poder, mas a bússola moral deve ficar bem clara. É uma questão de se posicionar com tolerância e autoridade: “não” significa “não”; não é ruim gostar de sexo; não há problema em ser gay, bissexual ou curioso; não é problema não querer sexo; sexo às vezes é ruim; e pintos têm uma aparência engraçada. Seguindo esses parâmetros, não preciso evitar qualquer assunto em meus livros.

Como acontece na obra de Ali, há dúzias de romances para jovens com um conteúdo sexual mais explícito, de todos os gêneros, da fantasia ao humor, boa parte deles lançada no Brasil pelos selos de literatura juvenil das editoras.

Em “Maldosas” (Rocco Jovens Leitores), Sara Shepard escreveu: “As garotas ergueram devagar as bainhas de suas minissaias, mostrando as calcinhas. Os olhos de Humbert saltaram e ele derrubou sua taça de pinot noir em sua calça cáqui, na altura da virilha”. O livro é o primeiro volume da série de mistério “Pretty little liars”, que acompanha a investigação e as consequências da morte de uma adolescente.

Em “Dois garotos se beijando” (Galera Record), David Leviathan entrou fundo no tema: “Ele viu tantas cenas de caras fazendo isso, ficou de *** duro com eles fazendo isso, se masturbou com eles fazendo isso”. Leviathan é conhecido por obras que tratam de personagens gays, e “Dois garotos se beijando”, recém-lançado no Brasil, fala de Aids e narra a história de dois rapazes que resolvem passar 32 horas se beijando para bater um recorde.

Por sua vez, Andrew Smith escreveu, em “Selva de gafanhotos” (Intrínseca): “Ela sempre dava um selinho em Robby depois de me beijar. Isso me deixava com tesão. Imaginava o que ela diria se eu lhe sugerisse um ménage à trois com nós dois em seu novo quarto velho ainda sem móveis”. O romance mistura um mundo pós-apocalíptico com a descoberta da sexualidade do protagonista.

— Nos EUA, o tabu de se escrever sobre sexo foi derrubado com tanta força que os jovens nem mais buscam livros destinados a faixas etárias mais velhas. Hoje, eles se sentem atraídos por obras mais dark, que lidam com morte ou com o fim do mundo — diz Cammie McGovern, autora do romance romântico “Amy & Matthew” (Galera Record).

No livro de Cammie, as descrições sexuais são discretas, mas há trechos como: “O sexo produzia suor e manchas horríveis e constrangedoras. Uma vez, lavando seus lençóis, a mãe dissera para ele: ‘Você é pior do que o seu pai’”.

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— A sexualidade é um passo para os jovens amadurecerem. Fico muito feliz que a literatura juvenil tenha se libertado o suficiente para permitir que os autores reflitam a realidade da vida dos adolescentes — afirma Cammie.

A dúvida é se esses autores de livros juvenis que lidam com sexualidade de forma mais direta combinaram antes com os russos — i.e., os pais. Há dois anos, a Companhia das Letras recebeu um pedido de esclarecimentos do Ministério Público do Distrito Federal, motivado por uma carta de pais de um colégio que havia incluído em seu currículo o livro “Aparelho sexual e cia.”, nada mais que um guia bem-humorado sobre sexo para pré-adolescentes.

— Com o tempo, os tabus vão caindo, mas ainda assim há algumas resistências. Os livros da “Garota <3 garoto”, por exemplo, a gente achou melhor não trabalhar junto às escolas — diz Júlia Schwarcz, publisher dos selos Seguinte e Companhia das Letrinhas. — Se você pega a série “Crepúsculo”, por exemplo, não havia descrições, mas a questão sexual acompanhava a história. E o “Cinquenta tons de cinza” foi muito lido pelos adolescentes. São temas presentes, que derrubam barreiras. Mas temos cuidados em não lançar obras inapropriadas em nossos selos jovens.

Até mesmo Pedro Bandeira, de 73 anos e um dos mais lidos autores de obras juvenis do Brasil, já se viu em meio a polêmica pelo conteúdo de seus livros. Um deles, “Mariana: Menina e mulher”, sobre o madurecimento da protagonista, levou um grupo de pais a reclamar de uma professora que o adotou na escola.

— Isso aconteceu há muitos anos. Só porque eu descrevia as mudanças biológicas da menina, quiseram decapitar a professora — recorda Bandeira. — Mas, sobre esses novos livros, é preciso diferenciar o que se chama de juvenil. Minha obra é adotada em escolas, no ensino fundamental. Quem escreve para essa faixa de público não descreve sexo. Em “A droga da obediência”, o máximo que eu me permiti foi dizer que “os peitinhos da Magri estão começando a crescer”. Já esses livros que trazem descrição sexual são destinados a jovens adultos e são de compra espontânea. São para jovenzinhos que já têm pelos sexuais, já fazem sexo com a namorada. Não vejo problema.

Thalita Rebouças é outra sensação entre os adolescentes brasileiros que também diz ter um cuidado grande com o tema. Ela cita como exemplo seu romance “Era uma vez minha primeira vez”, em que diz não ter precisado entrar em detalhes para falar sobre a perda da virgindade.

— Eu nunca coloquei a palavra *** num livro meu, e nunca vou colocar. Acho que é mais importante mostrar o que se passa por dentro do personagem do que descrever sexo. Pode ser que eu seja careta, mas não sou eu que vou dar esse tipo de detalhe para o leitor — diz. — Do mesmo jeito que há meninas de 14 anos mais maduras do que gente de 30, há meninas de 14 com mentalidade de 10. Por isso, os pais devem olhar os livros antes. São eles que conhecem melhor os filhos.

O problema em haver controle dos pais é que, mais uma vez, seria preciso combinar antes com os russos — desta vez, os filhos. Muitos desses livros podem ser conseguidos com colegas ou baixados ilegalmente na internet. Por exemplo, “Antes de morrer”, de Jenny Dowhan, lançado pela editora Agir em 2008, mas hoje fora de catálogo, surge em cópia digital numa simples busca no Google.

A obra, que conta a história de uma menina de 16 anos com uma doença incurável, traz trechos como: “Ele tem dificuldade para tirar a cueca, abaixando-a por cima do *** duro. Tiro a calcinha, percebo que estou tremendo. Estamos os dois nus. Penso em Adão e Eva”.

— A mudança de conteúdo nesses livros é uma consequência natural. Tudo o que um jovem quer saber sobre sexo hoje está na internet — analisa a antropóloga Mirian Goldenberg, que acabou de lançar o romance “Sexo” (Record), escrito com base em suas pesquisas com mulheres. — Falar sobre sexo não é mais um grande tabu, uma grande questão, nem para adolescentes e nem mesmo para idades mais jovens. Livros assim seriam precoces para a minha geração, mas não são para a geração de hoje. Já há algumas décadas, por causa da Aids, passou-se a se falar mais sobre sexo. A educação sexual entrou na vida dos jovens.

A educadora Tania Zagury, contudo, se preocupa com a maneira como determinadas situações são apresentadas para os jovens e com suas consequências. Ela destaca que, hoje, crianças de 2 anos já conseguem usar tablets com desenvoltura e podem ter acesso a um conteúdo inapropriado se não houver supervisão dos pais. Se crianças fazem isso, um adolescente, portanto, teria um universo infinito de possibilidades à sua disposição.

— Houve um estudo na Europa mostrando que a violência sexual cresce muito entre jovens, em parte porque vem sendo apresentada em filmes, livros, séries e jogos não como distorção, mas como algo normal — avalia Tania. — Os pais precisam prestar atenção. A sociedade se preocupa com a venda, não com a qualidade. Se os livros não passarem pelo crivo dos pais, o conhecimento que seria uma benesse se torna um problema.

Presença forte de cenas de sexo gera polêmica na literatura jovem e divide autores e educadores - Arte




Fonte: O Globo

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