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Nacional
Terça - 27 de Janeiro de 2015 às 08:49
Por: *JOSÉ ANTONIO LEMOS DOS SANTOS

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O incêndio foi na boate Kiss, em Santa Maria, na Região Central do Rio Grande do Sul (Foto: Germano Roratto/Agência RBS)

Ezequiel corre rua acima para tentar salvar um dos feridos na tragédia (Foto: Germano Roratto/Agência RBS)

Algumas imagens marcam pelo poder que possuem de registrar acontecimentos, sentimentos e emoções. O incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, produziu muitas cenas assim, que preferíamos nunca ter testemunhado. Mas talvez as que melhor tenham captado o desespero das vítimas e a dor pela morte de centenas de jovens (235 naquele 27 de janeiro de 2013 e sete nos meses seguintes) tenham sido as protagonizadas por Ezequiel Corte Real e Yasmin Müller.


O Brasil ainda não havia acordado naquele domingo quando o então estudante de educação física Ezequiel foi flagrado subindo a Rua dos Andradas, sem camisa, carregando um jovem desfalecido nos braços. A poucos metros dali, bombeiros ainda tentavam combater o fogo na casa noturna e socorristas acudiam os feridos, enquanto sobreviventes abriam buracos a marretadas nas paredes para que a fumaça saísse e outros se arriscavam a entrar no prédio em busca dos que ficaram para trás.

A foto registrada logo após o incêndio percorreu o mundo e estampou a capa de jornais como o The New York Times. Acabou virando símbolo dos heróis anônimos que surgiram em meio à tragédia: frequentadores que ajudaram a tirar feridos de dentro da casa noturna em brasa e impregnada de gases tóxicos, bombeiros, policiais, taxistas que levaram sobreviventes para hospitais, socorristas, médicos e enfermeiras que trataram as vítimas ao longo dos dias e meses seguintes, entre tantos outros.

O personal trainer, hoje com 25 anos, conta que naquele momento havia percebido que não havia mais ambulâncias que pudessem abrigar os feridos que ele e outros jovens estavam retirando da Kiss. “Estavam todas saindo, lotadas. Não tinha o que fazer. Fui correndo procurar ajuda, colocar na viatura da polícia”, recorda.

Ezequiel perdeu a conta de quantas pessoas ajudou a socorrer. Com a camisa protegendo o rosto para não respirar a fumaça responsável pela grande maioria das mortes, entrou e saiu de dentro da casa noturna diversas vezes.

Ezequiel personal trainer boate kiss santa maria (Foto: Arquivo Pessoal)Fisiculturista virou herói na tragédia ao tirar várias
pessoas da boate (Foto: Arquivo Pessoal)

Mas ele ainda lembra de como encontrou o menino que aparece em seus braços na foto. O cenário era aterrorizante. “Ele estava empilhado por cima de umas três ou quatro pessoas, um morro muito grande de gente. Eu e um amigo ficamos de tirar ele. Meu amigo conseguiu puxá-lo e o peguei nos braços. Vi que ele estava apagado e fui tentar procurar socorro. Era desesperador”, relata.

Ezequiel não conhecia o menino. Ficou sabendo dias depois que, apesar de seus esforços, ele não resistiu. Foi uma das tantas vítimas retiradas já sem vida de dentro da boate. “Como eu estava muito envolvido com toda aquela situação, não percebi que estavam todos mortos. A partir daquele ponto, o pessoal da saúde falou para pararmos, porque todos estavam saindo mortos”, lamenta.

Como não havia mais ninguém a quem salvar, o estudante universitário aceitou o conselho e parou. Também ouviu a recomendação de ir procurar um hospital por ter respirado a fumaça. Mas na fila de atendimento desistiu e voltou para casa. “Não aceitei ficar lá. Era uma situação muito ruim, tinha muita gente chegando pior que eu", justifica.

Apesar de ter respirado um pouco de fumaça, o fisiculturista garante não ter ficado com sequelas como outros sobreviventes. “Acredito que foi uma coisa maior que me protegeu”, diz ele, antes de ressaltar que não é praticante de nenhuma religião.

Uma prima distante não teve a mesma sorte e morreu no incêndio. Dois anos depois, ele crê que ela e todas as vítimas estão em “um lugar melhor”. Mas para quem fica, as mudanças são significativas. “Depois de estar em uma situação dessas, não há como não mudar. Meus valores mudaram completamente em relação à vida, amizade, bens materiais. Sinto-me uma pessoa que faz parte de outro mundo”, conclui.

Yasmim Muller - incêndio boate Kiss - dois anos (Foto: Lauro Alves/Agência RBS )Imagem de Yasmim sobre o caixão do namorado retratou luto por tragédia (Foto: Lauro Alves/Agência RBS )

Um chapéu símbolo do luto
Enquanto Ezequiel retirava sobreviventes de dentro da boate, Yasmin Müller, à época com 18 anos, procurava pelo namorado Lucas Dias, de 20 anos. Ela e o companheiro foram juntos à Kiss na noite de 26 de janeiro ver o show da Gurizada Fandangueira (cujo vocalista segurava o artefato pirotécnico que deu início ao incêndio) comemorar o seu aniversário de 19 anos, que seriam completados dois dias depois.

Enquanto Lucas escolhia a roupa que vestiria, ela coloriu as unhas com esmalte vermelho – cor que nunca mais escolheu para pintura. Pouco antes das chamas se espalharem pela casa noturna, o casal trocou juras de amor. O namorado afastou-se dela para ir ao banheiro, sem saber que os dois não voltariam a se encontrar. Quando o fogo atingiu o teto da boate, Yasmin foi salva, puxada para a rua. Tentou voltar em busca do namorado, mas foi impedida.

Nas horas seguintes, ela percorreu diversos hospitais de Santa Maria em busca do namorado. Tinha esperanças de reencontrá-lo vivo. Até que recebeu a notícia do paredeiro de Lucas: seu corpo havia sido identificado no Centro Desportivo Municipal (CDM), o ginásio para onde as vítimas foram levadas.

Yasmim chora sobre o caixão do namorado  (Foto: AP)Yasmim chora sobre o caixão do namorado
Lucas durante o velório (Foto: AP)

Foi lá, durante o velório, que Yasmin debruçou-se sobre o caixão do amado para se despedir, com as lágrimas escondidas pelo chapéu preto de abas largas que levava sobre a cabeça em homenagem. A foto dessa cena foi parar na capa da edição da revista Veja sobre a tragédia e simbolizou o luto de todo o país.

“Tiveram muitos comentários à época, de pessoas que nem sabiam o que estava acontecendo. Disseram que era uma montagem, que eu era uma modelo. Porque eu estava com as unhas bem pintadas de vermelho. Eu nunca mais pintei dessa cor. Até tentei, mas não gosto”, comenta Yasmin.

O chapéu característico dos homens do campo era o adereço preferido de Lucas, diz Yasmin. O jovem cultivava as tradições gaúchas, andava pilchado com botas e bombachas, frequentava CTGs e gostava de andar a cavalo. O acessório havia sido comprado na Casa do Gaúcho, uma loja de produtos típicos onde o casal trabalhou e se conheceu.

Desde aquele 27 de janeiro, o chapéu não pairou mais sobre a cabeça de Yasmin. Ele ficou aos cuidados da mãe dele, Marise, com quem a jovem mantém contato até hoje. Quando vai a Santa Maria, Yasmin procura visitar a ex-sogra. Mas a tragédia nem sempre é tema da conversa, que geralmente acontece regada a chimarrão.

“Eu não fiz questão de pedir o chapéu para ela porque uma mãe sofre bem mais com essa situação. Às vezes a gente fala sobre tudo o que aconteceu. Não tem como entrar na casa e não lembrar, as coisas dele estão todas por lá. Tem vezes que ela está bem, outras em que não está. Ele era filho único”, relata.

Tatuagem Yasmin Müller incêndio santa maria  (Foto: Arquivo Pessoal)Yasmin fez a tatuagem em homenagem ao ex
em março de 2013 (Foto: Arquivo Pessoal)

As lembranças do que viveu com o jovem foram marcadas no corpo. Tatuou, próximo à costela, no lado esquerdo, o trecho de uma música que simbolizava a história do casal. O verso estava presente no primeiro bilhete que Lucas escreveu quando tentava conquistá-la. “Me procurando achei teus olhos, pelos caminhos de flor e encanto”, diz a tatuagem.

Dois anos após a tragédia, Yasmin vive junto à família, em São Pedro do Sul, a cerca de 39 km de Santa Maria. A rotina sofreu mudanças após o incêndio. A começar pelo aniversário, em 28 de janeiro. Não gosta mais de promover comemorações, prefere ficar tranquila ou “dar uma volta de carro” para sair de casa. Também perdeu o gosto pelas festas em boates.

No ano passado, ela aceitou ao pedido de namoro de um “menino da Fronteira”, natural de São Borja. Foram meses até entender que poderia seguir adiante. “Eu avisei que era para irmos com calma. Então ele me acompanhou, se adaptou ao meu ritmo. Até que, claro, teve o empurrão, uma certa pressão, para a gente começar a namorar. Falamos com tranquilidade sobre tudo o que aconteceu, não tenho por que esconder nada”, resume.

No começo de 2015, Yasmin recebeu boas novas. Passou no vestibular para zootecnia, na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Aguarda para fevereiro, porém, o resultado das provas para o curso que sonha em entrar: medicina veterinária, na Universidade Federal do Pampa (Unipampa), em Bagé, na Campanha. O projeto de viver no campo tratando de animais era partilhado com Lucas.

Yasmin Müller incêndio boate kiss santa maria (Foto: Arquivo Pessoal)Yasmin Müller foi salva na hora do incêndio na boate Kiss (Foto: Arquivo Pessoal)

Entenda
O incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, ocorreu na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013. A tragédia matou 242 pessoas, sendo a maioria por asfixia, e deixou mais de 630 feridos. O fogo teve início durante uma apresentação da banda Gurizada Fandangueira e se espalhou rapidamente pela casa noturna, localizada na Rua dos Andradas, 1.925.

O local tinha capacidade para 691 pessoas, mas a suspeita é que mais de 800 estivessem no interior do estabelecimento. Os principais fatores que contribuíram para a tragédia, segundo a polícia, foram: o material empregado para isolamento acústico (espuma irregular), uso de sinalizador em ambiente fechado, saída única, indício de superlotação, falhas no extintor e exaustão de ar inadequada.

Ainda estão em andamento os processos criminais contra oito réus, sendo quatro por homicídio doloso (quando há intenção de matar) e tentativa de homicídio, e os outros quatro por falso testemunho e fraude processual. Os trabalhos estão sendo conduzidos pelo juiz Ulysses Fonseca Louzada. Sete bombeiros também estão respondendo pelo incêndio na Justiça Militar. O número inicial era oito, mas um deles fez acordo e deixou de ser réu.

Entre as pessoas que respondem por homicídio doloso, na modalidade de "dolo eventual", estão os sócios da boate Kiss, Elissandro Spohr (Kiko) e Mauro Hoffmann, além de dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, o vocalista Marcelo de Jesus dos Santos e o funcionário Luciano Bonilha Leão. Os quatro chegaram a ser presos nos dias seguintes ao incêndio, mas a Justiça concedeu liberdade provisória a eles em maio do ano passado.

Atualmente, o processo criminal ainda está em fase de instrução. Após ouvir mais de 100 pessoas arroladas como vítimas, a Justiça está em fase de recolher depoimentos das testemunhas. As testemunhas de acusação já foram ouvidas e agora são ouvidas as testemunhas de defesa. Os réus serão os últimos a falar. Quando essa fase for finalizada, Louzada deverá fazer a pronúncia, que é considerada uma etapa intermediária do processo.

No dia 5 de dezembro de 2014, o Ministério Público (MP) denunciou 43 pessoas por crimes como falsidade ideológica, fraude processual e falso testemunho. Essas denúncias tiveram como base o inquérito policial que investigou a falsificação de assinaturas e outros documentos para permitir a abertura da boate junto à prefeitura.





Fonte: Do G1

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